Belém do Pará, 11 de novembro de 2024.
Prezada Elisa Lucinda,
Para começo de conversa, sou um homem branco. E o motivo de lhe escrever esta carta é revelar que, após testemunhar o que você fez sozinha no palco do Teatro Margarida Schivasappa no último sábado, perdi o direito de permanecer o mesmo homem branco.
Sua construção dramatúrgica e atuação performativa como mulher negra, multiartista, pedagoga e ativista me atravessaram. Por mais de duas horas, essa poética foi eficaz em radiografar e expor minhas entranhas racistas, machistas, misóginas e de outras tantas formas de intolerância das quais fui nutrido ao longo de 54 anos de uma vida burguesa.
Sou oriundo de uma classe média provinciana de Belém, conservadora e preconceituosa aos extremos. Assim, admito que cresci tratando como pessoas menores as domésticas, porteiros, faxineiros, garçons – ou seja, na esmagadora maioria dos casos, gente preta. Além do que, não raro, agi da mesma forma, desde a escola ao trabalho, com colegas de origens racial e social diferente da minha, sobretudo de herança africana ou cabocla.
Faz algum tempo que procuro me reeducar, e tenho conseguido algum avanço, mas sou consciente de que é preciso estar atento e forte, como diz a canção. O sinhozinho mora dentro de mim, sempre à espreita do menor descuido para oprimir os subalternizados.
Por tudo isso foi tão importante assistir ao seu teatro, trincheira da arte como território para uma ação pedagógica cujo propósito é enfrentar com determinação a profunda intolerância às diferenças, um dos esteios para as desigualdades sociais do nosso país.
Saí daquele encontro – porque seu espetáculo é, antes de tudo, encontro humano vivo – desejando muito que o maior número possível de espectadores possa ter sido tocado de forma semelhante a que fui. É alentador crer que um acontecimento cênico seja capaz de provocar um despertar verdadeiro, a fim de nos tirar do conformismo e da inércia. Como artista e professor de teatro, particularmente, fiquei encantado com esse aspecto.
Torço que possamos tornar cada vez mais plena de afetos nossa “vida inédita pela frente”. E menos massacrada pelo obscurantismo “a virgindade dos dias que virão”.
Com admiração, respeito, afeto e, mais que tudo, profunda gratidão,
Alberto Silva Neto