Por Kil Abreu.
Assisti a Parem de falar mal da rotina faz um bom tempo. A peça tem vinte e dois anos de estrada. A montagem a que assistimos no Pulsa!, em Belém, é um espetáculo diferente do que vi antes. Mas é uma montagem que envelheceu aprendendo a falar a língua do seu tempo.
Elisa Lucinda é uma artista de classe média. Isso continua lá. No mundo da mercadoria tem menos a ver com ser, estar rico ou pobre. Tem mais a ver com imaginários a respeito de qual posição você acha que ocupa na selva.. Daí todas as projeções, fantasias, ampliações ou estreitamentos que a gente desenha para as nossas vidas. Por isso alguma consciência sobre nossa situação de classe é sempre importante. Evita por exemplo que você caia no constrangimento que é ser pobre de direita.
Elisa é aliada verdadeira, mas a verdade não alcança tudo. Ela não é, por exemplo, o morador de rua cuja história relata de maneira comovente e comovida. Tem uma cifra daquela dor que ela não alcança, mas tenta compreender e se põe com categoria do lado que interessa, mas com olhar compassivo, quase caridoso. Olhar que se entristece e nos entristece quase que com um argumento incontestável: o de que precisamos ser humanos melhores, ter empatia pelos caras que estão mais fodidos que nós. Precisamos vê-los, precisamos dar bom dia a eles. E quem vai discordar? A posição da atriz é desenhada com ênfase insuspeita. Não há dúvida. De novo, indiscutível. Mas, se colocar a lupa você vai ver que é militância que quase nos faz crer que se deve amar a pobreza. Afetos traiçoeiros. Feias marcas de nascença que, entretanto, parecem até bonitas. O desaparecimento do cara que mora sob a árvore naquele bairro de pessoas de bem cria uma crise moral no coração da gente. Imaginamos junto com a atriz o destino terrível dos corpos que o capital desqualifica e afasta da nossa vista. O destino daquele camarada pode ter sido – imaginamos – a mesa de estudos de alguma faculdade de medicina onde jovens bem nascidos preparam-se para o ofício e para o orgulho dos pais. Ou, talvez, alguma entre as muitas valas de uma cidade pródiga nelas. “São Sebastião, crivado, nublai minha visão”…. Mas, veja bem, não se entra no mérito do sistema que faz com que aquele cara exista. E então uma parte do espetáculo, suas variações líricas ou cômicas, nos ensinam a sermos solidários. Ao menos moralmente. O que significa, nessa pulsação cordata, uma pedagogia que deve comemorar a notícia de que, não, olha lá, o cara não morreu, estava apenas “de férias”. Agora que ele voltou para a miséria do asfalto nós podemos seguir aliviados novamente. E, no caminho, jamais esquecer de olhar em seus olhos e dizer a ele “bom dia”. Seria isso?
Bonito mesmo é ver a voz afirmada de Elisa Lucinda fazendo a pedagogia antirracista. É quando o espetáculo envelhece ainda melhor. O entusiasmo juvenil está lá, de mãos dadas com o engenho do argumento vivo, improvisado como numa batalha, num slam, num repente. Preparado para enfrentar a loucura triste, a certeza de algum fascista na plateia que porventura tenha envelhecido perigosamente, a ponto de comparar a existência dos pretos à causa de cavalos e outros “pets”.
Essas pessoas existem, não estão sozinhas, nos diz a cena compartilhada com a plateia. Que frio na espinha, saber que certamente há outros como aquele, em silêncio. Ou capazes de reclamar para si o protagonismo do espetáculo e perguntar, quando de uma reverência ao candomblé: “mas, e a magia?”.
A estupidez é afeto ilimitado. Nesse caso será sempre um alívio ouvir Elisa Lucinda responder da mesma forma como responderia um outro poeta, o Sérgio Vaz:
“Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Mílton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina…
Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brow, Thalma de Freitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam
Magia negra é dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas 2 pernas mágicas e negras James Brown. Milton Santos é pura magia.
Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão.
(…)
Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo.
Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.
Magia negra é magia que não acaba mais.
É isso e mais um monte de coisa que é magia negra.
O resto é feitiço racista”.