Por Ondovato.
Até quando ficaremos calados, acomodados em nossas esferas de conforto, sublimes nesse conformismo resignado?
Vinte e dois anos atrás, Elisa Lucinda estreou Parem de falar mal da rotina para “falar o que quiser no palco”. São palavras dela, praticamente encerram o espetáculo, e são reais. A atriz, cantora, poeta, mãe, jornalista, escritora, dramaturga, professora — e sabe-se lá o que mais —, alcançou esse lugar, e fala!
São mais de duas horas e meia em que Elisa desfila pelo palco, recita alguns poemas, canta, brinca, flerta, mas, principalmente, dialoga com a plateia. Não no sentido literal do termo, no campo do concreto e do factível — por mais que isso também aconteça —, e, sim, na camada do empírico e do sentimental. Ela entende o seu público, conhece a natureza dele, domina cada centímetro quadrado do tablado. Mais de duas décadas circulando pelo Brasil e com cerca de dois milhões de espectadores, ela sabe os caminhos para fisgar sua assistência.
Praticamente todo o espetáculo se dá em um formato bem próximo ao stand-up, surfando entre piadas velhas, outras fáceis, algumas óbvias, mas também por sacadas brilhantes e improvisos sedutores. A apresentação flui de acordo com a cidade onde está, o tipo de audiência, a época do ano. A consagrada atriz tem os mapas, compreende onde deve insistir, quando deve atenuar, e se deve ser incisiva. Essa competência observacional e emocional demonstra grande respeito e consideração às pessoas sentadas à sua frente.
Carregado em tintas políticas e engajadas, o humor sagaz descola o trabalho do panfletarismo fácil e chato, algo bem comum nos últimos tempos. Elisa discorre sobre racismo, educação, homofobia, preconceitos, invisibilidades, sem perder a graça e a firmeza, e, primordialmente, sem perder o cordão que a conecta ao público, que em várias oportunidades se manifesta, provocando a troca, à qual se entrega sem pudores e medos. Aliás, a força da palavra e a nítida vocação para o palco nos fazem pensar que Elisa Lucinda nunca teve medo. Por sorte, ela mesma nos apresenta sua humanidade. Há momentos tocantes e delicados, quando é possível vislumbrar aqui e ali umas lágrimas e uns suspiros, e aceitar que toda aquela potência tem suas fragilidades. Se algo nos afeta, o Teatro cumpriu sua função.
Parem de falar mal da rotina nos faz rir e nos emociona, mas, talvez, seu maior legado seja fazer ecoar em nossas mentes a pergunta que conversa com o parágrafo inicial
deste texto: afinal, até quando habitaremos o lugar mas não exerceremos a fala? Quando vamos nos mexer e começar a chutar a barriga da vida?